Cinismo e falência da crítica

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Durante algum tempo acreditou-se que o esgotamento de modos de pensar e de formas de vida nos levaria, necessariamente, a realidades sociais renovadas. Como se após a queda viesse a redenção. Mas o que dizer quando nenhum acontecimento vem após a crise, quando certa estabilidade parece desenhar-se em meio à desagregação de padrões normativos?

Neste livro, Vladimir Safatle oferece uma interpretação original desse fenômeno de “estabilização na decomposição”. O filósofo propõe tirar as consequências da ideia de que nossas sociedades capitalistas avançadas conseguiram organizar-se a partir de uma racionalidade cínica. O resultado é uma obra que repensa as bases do que significa fazer crítica no século XXI. Afinal, se “cinismo” é o nome da decomposição de valores e critérios normativos que pareciam ser o saldo mais valioso de nossas expectativas modernas de racionalização social, então ele traz necessariamente consigo a falência de certa forma de crítica.

No prefácio inédito, escrito para esta nova edição, revista e ampliada, Safatle reflete sobre a atualidade do livro diante da reemergência do fascismo no Brasil e no mundo. Para ele, não é à toa “que as figuras atuais de lideranças autoritárias são, em sua grande maioria, ‘cômicas’, ‘paródicas’. Muitas delas vieram ou passaram longas temporadas no universo da comunicação de massa, como personagens que jogam deliberadamente com a caricatura e a estereotipia, que riem de si a todo momento, que nos fazem a todo instante duvidar se estão a falar a sério ou não.” Afinal, continua o autor, “nada mais autoritário que um poder que ri de si mesmo. Pois uma normatividade que funciona de forma cínica é aquela que traz em si mesma sua própria negação, a consciência de seu próprio impasse, a figura de sua própria crítica, sem que tal contradição lhe impeça de funcionar. Isso significa que as pessoas são conscientes do caráter impotente das enunciações que elas mesmas sustentam, mas tais enunciados devem continuar a ser ditos, devem continuar a circular misturando seriedade e ironia, como se estivéssemos em uma situação de ironização absoluta das condutas.”

Trecho

“Nós nos sentimos normalmente reconfortados com a promessa de que a verdade nos libertará, ou seja, de que a luz advinda com a enunciação da verdade será capaz de portar um acontecimento que reconfigura o campo da efetividade. No entanto, o cinismo coloca-nos diante do estranho fenômeno da usura da verdade, de uma verdade que não só é desprovida de força performativa, mas também bloqueia temporariamente toda nova força performativa. Em uma formulação feliz, Sloterdijk nos lembra que “há uma nudez que não desmascara mais e não faz aparecer nenhum ‘fato bruto’ sobre o terreno no qual poderíamos nos sustentar com um realismo sereno”. Ela é importante por nos lembrar que não há, no cinismo, operação alguma de mascaramento das intenções no nível da enunciação. Não se trata de um caso de insinceridade ou de hipocrisia. Ao contrário, mesmo que haja clivagens entre a literalidade do enunciado e a posição da enunciação, essa clivagem é, tal como na ironia, claramente posta diante do Outro. Assim como na ironia, no cinismo o Outro percebe que o sujeito não está lá para onde seu dito aponta”.

18 em estoque

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